Projeto Fábula no Atacama (III)

Outras Peças Literárias

Por Fernando Soares Campos(*)

Estou obsessivamente empenhado no projeto cine-literário Fábula no Atacama, diálogo entre um urubu faminto e um preá agonizante. É realmente um projeto ambicioso, que certamente se tornará um marco entre alguma coisa e coisa alguma, aquilo que nunca foi antes de ser. A quintessência da originalidade.

O meu editor-produtor não é nenhum mecenas, mas é apaixonado pelas artes, tanto que se tornou um abnegado executivo com MBA em Economia e Gestão em Arte para o Mercado. Ele exigiu que eu obtivesse patrocínios, a fim de viabilizar essa megaprodução, para não dependermos apenas do infalível sucesso de bilheteria e do garantido faturamento das livrarias.

Conforme informei semanas atrás, enviei proposta para os departamentos de marketing e comunicação de diversas empresas. Apesar de já ter-se passado mais de um ano, ainda espero alguma resposta positiva. Essas coisas não são decididas de uma hora pra outra, geralmente são submetidas a deliberações de conselhos administrativos e inseridas em futuras campanhas publicitárias. Mas a verdade é que eu não deveria ter assumido esse compromisso, visto que se trata de área específica do meu editor-produtor, um expert em captação de recurso para produção cultural. E que ninguém duvide de um profissional que já conseguiu a aplicação da Lei Rouanet para turnês de grupos funk, duplas sertanejas e bandas de axé music. Assim sendo, deixo as funções de captador de recursos para quem tem experiência no ramo. Cada um no seu quadrado. A partir de agora, passo a me dedicar exclusivamente às atividades tocantes às minhas atribuições na condição de autor-diretor deste projeto.

***

Creem os materialistas que o pós-morte é apenas uma passagem para o vazio, uma viagem ao nada, sem volta. Ou mesmo uma viagem sem volta ao nada. Enquanto para os religiosos, o último suspiro liberta a alma da pesada matéria que a aprisiona a este mundo e lhe dá acesso à verdadeira vida, paradisíaca ou infernal. Quem morrer verá. Ou não, conforme creem os materialistas. 

Também dizem que os moribundos fazem retrospectivas mentais de suas existências, recordando seus principais feitos e desfeitos. Mas o que teria um preá agonizante a relembrar? Provavelmente as roeduras de cada dia e os chiados de cada coito. Entretanto esse não é o caso de um fabuloso preá turista brasileiro perdido nos confins do Vale da Morte, no Deserto do Atacama. O nosso preá agonizante tem histórias pra contar, pois incríveis aventuras viveu e tantas outras, fantásticas, ouviu.

003 — Deserto do Atacama — Vale da Morte — noite 

Com a chegada da estrelada noite atacamenha, o urubu faminto recolhe-se ao topo de uma das elevações que ladeiam o corredor do Vale da Morte; enquanto o preá agonizante, acomodado numa pequena depressão do terreno, adormece e sonha revivendo os mais felizes momentos de sua infância nos arredores de Taubaté, interior paulista. 

Close do preá adormecido...

A imagem ondula, ondula, ondula... até que, estável, exibe o universo onírico do preá:

A mãe-preá chegando ao ninho. Quatro filhotes, há poucas semanas de nascidos, entre eles o preá agonizante, tateiam na semiescuridão do lar, ávidos pelas tetazinhas maternas. Seus três irmãos se apoderam dos bicos mais fartos, na parte traseira, sobrando-lhe as glândulas menos lactíferas, próximas às patinhas dianteiras da mãe. Por isso ele se tornou o filhote mais franzino da ninhada. Seus irmãos o consideravam um tolo, visto que nunca disputava a fartura das mamas da retaguarda. O que nenhum deles percebia era que a sua atitude, aparentemente passiva, tinha objetivos pragmáticos: naquela posição ele, bem ou mal, alimentava-se e, de lambujem, gozava as carícias da mãe-preá, deleitava-se com as lânguidas lambidas maternas. Contudo, além do conflito edipiano e da necessidade alimentar, o preazinho mirrado preferia a primeira fila porque a sua mãe lhe contava maravilhosas histórias de ninar. Estando ali bem próximo da fonte sonora, ele não perdia um só trecho dos fascinantes contos que a mãe-preá narrava com a competência de uma Sherazade. 

Plano geral: a mãe-preá deitada e os filhotes sugando-lhe as mamas com sofreguidão. Corta para close do preazinho franzino, único a sorver com parcimônia. 

Mãe-preá: — Era uma vez... 

Fim do sonho. 

Close do preá fazendo bico em movimento de abre e fecha, como se estivesse numa pega de sugar as tetazinhas da mãe.

Ele desperta pela madrugada piscando seus olhinhos de rato. O breu da noite atacamenha o traz de volta à realidade, e o doce sonho se transforma em melancólica lembrança. Uma lágrima brota no canto do olho esquerdo, enquanto o direito se agita, dilata-se e vê a gotícula crescer, rolar e precipitar-se no ar, cintilante, em câmera lenta... A miúda língua do preá agonizante surge estendendo-se progressivamente, milímetro a milímetro, quadro a quadro, e a gotícula se choca sobre ela, fragmentando-se espetacularmente em tantas outras partículas...

Contrarregra: Ploc!

A minúscula língua, ágil, se recolhe... 

Contrarregra: Shupt! 

Legenda (as palavras surgem uma a uma): 

AS  LÁGRIMAS  LAVAM  A  ALMA 
E  EVENTUALMENTE  SACIAM  A  SEDE 

Não se sabe bem qual a razão predominante, se a saudade ou a sede, mas naquela noite estrelada o preá chorou até o amanhecer. 

004 — Deserto do Atacama ─ Vale da Morte — dia

Sol escaldante, rajadas de vento transportam sucessivas nuvens de poeira. O preá desperta, pisca seus olhinhos de hamster e vê aquilo que mais temia: o urubu faminto pousado na borda de sua cavidade-abrigo, observando-o. Pensou em cumprimentá-lo, porém imaginou que desejar “bom dia”, naquelas condições, poderia soar ironia. Optou por apenas murmurar um “oi!”, mas o faz num tom extremamente pesaroso, tanto que o urubu achou que ele estivesse gemendo de dor. 

— Croac croooac? — perguntou o urubu. 

— Falo sim, sou poliglota, mas preferia que conversássemos num dos idiomas humanos. Você fala português?

— Rouc croc! – respondeu em urubuês, mas logo corrigiu: ─ Ah, desculpe... Falo sim! Sou brasileiro, também sou multilíngue e experiente ator, já trabalhei em diversas fábulas.

— Céus! Minhas suspeitas estão se tornado realidade!

─ O que você quer dizer com isso?!

─ Tenho a impressão de que já vi você no telão. Atuou em “O urubu e o papagaio”? 

— Fui o único intérprete, fiz duplo papel. 

— Assisti... e jamais esqueceria o perfeito desempenho de ambos os personagens. Só não entendo como conseguiu tal proeza... 

— Caracterizado como um louro falador e sob a minha própria identidade. O resto ficou por conta de efeitos especiais, jogo de espelhos. 

— Bem, eu queria saber mesmo é como conseguiu representar, numa mesma obra, personalidades tão diferentes e, até certo ponto, antagônicas.

— Fiz laboratório. 

— Laboratório?! Onde? 

— Brasília. 

— Ah, Brasília... Congresso Nacional?

— Sim, duas semanas na Câmara e uma no Senado. 

— Nossa! Deve ter assimilado muitas facetas! 

— Realmente, hoje sou considerado um ator multifacetado. 

Apesar de conhecer a natureza necrofágica do urubu, o preá agonizante não ignorava o ditado “o apressado come cru” e temia que, para um urubu faminto, isso pudesse traduzir-se em “o esfomeado come vivo”. Precisava distraí-lo. E não havia melhor maneira que apelar para o ego de um ator vaidoso. 

— Eu daria meus últimos momentos de vida para assistir a uma de suas apresentações ao vivo. 

O urubu faminto expressou gesto de falsa modéstia: encolheu-se e moveu a cabeça para os lados, mantendo um sorriso encabulado no bico torto. 

— Pena que não tenha aqui comigo um pedacinho do couro da minha última refeição, pois eu poderia lhe dar um autógrafo.

O preá se abala com a real possibilidade de vir a ser a próxima refeição do urubu faminto.

— Não! — engasgou-se —. Quer dizer, não mereço tanto... Sou um reles preá em extinção... Provavelmente o último da espécie aqui no Atacama. Ficaria satisfeito se pudesse assistir a algumas de suas performances. 

O urubu olhou para o preazinho moribundo e, baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, decidiu atender o último desejo de um condenado à morte. 

— Está bem. Veja esses trechos de “Um urubu no Planalto Central”. 

Fazendo poses, caras e bicos, o urubu finge atender ao telefone, conceder entrevista, discursar numa tribuna, assinar papéis, interrogar em CPI... Por último, a melhor de suas interpretações: embolsar propina, propina, propina... de dez, vinte, trinta, quarenta e até cinquenta por cento...

Tão distraídos estavam que foram surpreendidos pelo entardecer anunciando mais uma estrelada noite atacamenha. O urubu faminto despediu-se, recolhendo-se ao topo da montanha, onde, pacientemente, aguardaria a sua refeição atingir o ponto ideal. 

O preá agonizante, saudoso e sedento, chora. Não se pode determinar a razão predominante, se saudoso ou sedento, ele apenas chora por mais uma noite inteira. 

***

Episódios anteriores:

Projeto Fábula no Atacama (pouca carniça pra muito bico)


Projeto Fábula no Atacama (II)

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse  ̶  8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade  ̶  contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.    

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